quarta-feira, 21 de novembro de 2018


A ARTE DE “TARRAFEAR”

                                                                                                     Krretta

        

         Conversei, ou melhor, indaguei de um dos personagens desta história que vou agora contar, sobre a sua veracidade, mas não obtive nenhuma afirmativa: nem que sim, nem que não...
         Tenho por mim que o fato “se assucedeu”, mas, por razões óbvias foi esquecido.
         A pescaria, com toda a certeza foi no nosso Rio Camaquã, o rio que é das garças que moram no leito, e têm o despeito...
         O Leto havia comprado recentemente uma tarrafa (espécie de rede de pesca de forma cônica, guarnecida de chumbo nas bordas, que se lança à mão – Dicionário da Língua Portuguesa) e, estava em fase de experimentação.
         É preciso salientar que “tarrafear” é uma arte.
         Não é qualquer “paisano” que pega uma tarrafa e a lança com o devido preceito, como manda o figurino e estabelece as suas normas.
         Não, decididamente não.
         A sua utilização requer muito treino e conhecimento da “lida”.
         Deve-se dizer também que uma tarrafa bem lançada é um verdadeiro espetáculo de arte, leveza, sincronismo e perfeição.
         Leto se acha, até hoje, um bom tarrafeador.
         Isso é ele lá com os seus conceitos, coisa que os amigos mais próximos não concordam, e até duvidam.
         Dizem que nunca foi “tarrafeador”.
         Mas, enfim, estavam lá nas barrancas do rio, o Leto e o Carancho.
         Uma pergunta que até agora não consigo parar de me fazer: o que leva um cara, ao menos tido como normal, atirar de cima de um barranco as suas botas dentro do Rio Camaquã?
         Para quem conhece “o nosso rio”, sabe que ali a correnteza é bastante intensa, mesmo quando suas águas estão baixas, portanto, é um rio que exige muitos cuidados.
         Muitos pescadores já viraram barcos e outros tantos já perderam todos os seus apetrechos de pesca rio abaixo.
         O JB que o diga.
         Mas então, lá estavam o Leto, pescador afamado e criado naquelas barrancas e o Carancho, músico de mão cheia e não dado à lida de pescaria, mas parceiro para tudo e para todos.
         Agora é que vem a indagação.
         O que leva uma pessoa a jogar um par de botas fora, na correnteza do Rio Camaquã?
         Conversa vai, conversa vem, o Leto se tendo por exímio tarrafeador, convence o Carancho de atirar as suas botas no rio, onde dizia que não dava nem tempo de vir à tona e elas já estariam tarrafeadas.
         Volto à questão: o que leva uma cara a atirar as suas botas no meio do Rio Camaquã para o parceiro tarrafear?
         Bebedeira? Loucura? Dinheiro sobrando?
         Quais foram os argumentos do Leto para que isso acontecesse?
         O que passava na ideia do Carancho para tirar e atirar as suas botas naquela correnteza?
          E confiar no parceiro...
         Isso! Está dito: confiança.
         Confiança na tarrafeada, confiança no taco, na mão do amigo, na experiência de anos com uma tarrafa na mão (será?), confiança na habilidade do parceiro em lidar com aquela rede cônica...
         Mas não me conformo.
         Quando me contaram essa história não acreditei, juro que não acreditei.
         Ainda estou pasmo.
         Minha curiosidade está nos argumento, nas palavras, no convencimento em fazer um amigo descalçar as suas botas e simplesmente jogá-las no meio do rio...
         Não preciso dizer o que aconteceu, né?
         ...Leto se preparou, armou a tarrafa, enquadrou o corpo para um melhor arremesso, concentrou e gritou:
- ATIRAAA!
         Então, as botas iniciaram um voo desengonçado, girando sobre si mesmas, numa dança esquisita e surreal no ar, como se anunciando um fim triste e melancólico.
         Quando a rede de pesca de formato cônico, guarnecida de chumbo nas bordas e lançada “a moda Miguelão” tocou nas águas límpidas e intrépidas do Rio Camaquã, as botas do Carancho já estavam à meia légua dali... rio abaixo.
         Só se ouviu um triste lamento, num grito abafado:
- PQP!


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