quinta-feira, 11 de janeiro de 2018


O AFILHADO
   
                                                                                                                                                                                           Krretta

            Essa aconteceu em Bagé.
   A história que conto é de um amigo do seu Chico Carretta, companheiro inseparável nos jogos de futebol, aos domingos de tarde, no Estrela D’Alva.
           Incontáveis vezes participei destas jornadas esportivas.
           O tempo da história e sua narrativa situa-se no final de década de 1960.
           Vai lá:
“Pois ele conseguiu um afilhado que era fantástico.
Menininho de boa índole, bem-criado, de família humilde, honesta, cujos pais empenham-se em bem criar seus onze filhos.
Negrinho bom de bola, ligeiro, dribles curtos, objetivo e de uma constituição física “mirradinha”, mas que a gente tem prazer em ver jogar uma “pelada”.
Provávelmente será um daqueles raros talentos que irão se perder, pois, com certeza, quando a idade for avançando, o salário da família apertando, terá que largar o que gosta de fazer, e também os estudos, para trabalhar e ajudar no sustento da família.
Uma injustiça, mas a vida tem nos ensinado que é assim, e ponto final.
Mas, voltemos ao “Micuim”.
De uma certa feita, num Baguá (clássico futebolístico entre Guarani x Bagé), num jogo rinhado, o Micuim foi convidado pelo padrinho para ir junto, já que era a final do campeonato citadino.
Casa cheia, estádio completamente lotado, a Taba Índia pulsava aos gritos de ambas as torcidas, muito agito, muitas bandeiras, charangas em plenos pulmões, tarde de sol, um domingo de festas.
E lá se foram o padrinho com seu afilhado...
Micuim era muito esperto, atento a tudo e a todos, não perdia um lance, nem nas arquibancadas e muito menos dentro do campo.
- Padinho, quem aquele cara ali? – quando um amigo passava e cumprimentava ao seu padrinho.
- Padinho, por que a bandeira do Guarani e mais bonita que a do Bagé?
- Padinho, que horas vai começar o jogo?
E assim ia perguntando tudo o que tinha direito e o que não tinha, ao passo que era respondido calmamente por seu padrinho, fazendo-o ver que toda a criança tem direito a todas as respostas às suas perguntas.
- Olha a pipoca! Pipoca quentinha! Olhaaa a pipoca!!
O negrinho cravou os olhos no tabuleiro de pipocas, e meio envergonhado pediu:
- Padinho, me dá uma pipoca?
De imediato foi comprada a pipoca para o piá, que brilhou os seus olhinhos, numa expressão de eterno agradecimento, pois provávelmente foram poucas, ou nenhuma, as oportunidades que teve de comer um saco de pipocas, e aquilo confortou bastante o seu protetor.
De repente, numa gritaria geral, entram em campo os times, e começam a estourar foguetes, agitam-se as bandeiras, charangas entoam os gritos de guerra, e a festa vai começar...
E lá está o Micuim, realizado.
Nem bem começa o jogo e um grito ao longe se escuta:
- Olha o picolé, picolé de morango, abacaxi, creme, limão...!!!
- Picolé baratinho, geladinho, gostosinho!! – grita mais alto o vendedor, vendo que o seu afilhadinho já botava o olho na caixa de isopor.
Não deu outra.
- Padinho, me dá um picolé?
- Qual o sabor que tu queres?
Micuim olhou para o padrinho com seus olhinhos de indagação e não soube responder, pois talvez não saberia escolher de tantas opções que tinham e que ele, certamente, nunca havia tido esta chance.
- Qualquer um – disse atônito.
E lá estava o negrinho saboreando um picolé de morango.
A partida corria solta, disputada, acirrada e o Micuim de olho nas jogadas, nos dribles, e mais ainda naquela bola número cinco, branca, reluzente, talvez imaginando um dia poder ter uma daquelas, sonho de qualquer guri (N.A.-meu também)
- Amendoim quentinho, torradinho, quem vai querer???
- Olhaaa o amendoim, torradinho!!!
Não foi preciso esperar muito.
- Padinho, me dá um amendoim?
Depois desta, a partida passou a ter e ser uma sensação de segundo plano, pois os vendedores começavam a ter maior significado para o Micuim.
Era anunciar uma guloseima e o Micuim pedia ao seu padrinho.
Quem nunca foi assim?
O sonho de toda a criança, principalmente nestas ocasiões, sempre fica nos balaios e isopores de qualquer vendedor, pois doces e salgados sempre foram as suas preferências, e não seria o seu padrinho, com toda a certeza, a desvanecer o encanto do seu afilhado.
- Pastel! Olha o pastel de carne e de queijo, tem pastel de galinha, tem pastel de goiabada!!!
Só me digam, sinceramente, quem resiste a um pastel, seja numa partida de futebol, numa carreira, na rodoviária, ou na lancheria de beira de estrada?
- Padinho, me dá um pastel?
- Pastel aqui para o meu negrinho bom de bola! – gritou o seu padrinho.
E, assim foi o tempo todo.
Terminou o primeiro tempo da partida, veio o segundo, e o Micuim sempre na mesma batida, o que vendiam, ele pedia.
Ainda bem que o Guarani estava ganhando a partida, e quando faltava uns dez minutos para o fim do prélio, para reforçar a defesa e segurar o resultado, o treinador retira um atacante e coloca o Lambari, jogador de força física, volante de espantar qualquer perigo que rondasse a sua defesa, aplaudidíssimo pela sua torcida.
Lá do alto do pavilhão central do Estádio Estrela D’Alva, o serviço de alto-falante anuncia a substituição, informando os torcedores:
- Sai Zé Roberto e entra LAMBARI!!
Sem nem imaginar o porquê, nosso padrinho por intuição resolveu olhar para o seu afilhado, quando veio a surpresa (seria surpresa?):
- Padinho, padinho, me dá um lambari???
E, novamente, seus olhinhos brilharam de satisfação...
Por onde será que anda o Micuim? Me deu saudades.

Nenhum comentário: